Uso de madeira na maturação de queijos: uma tradição secular a ser respeitada – Parte 2

Muitos tipos de queijos no mundo inteiro foram tradicionalmente elaborados e moldados em fôrmas de madeiras por longos anos e o uso de madeira tem sido motivo de debates polêmicos nos últimos anos. Por que acontece esta polêmica? Resposta: Falta de conhecimento científico sobre os benefícios que a madeira causa na maturação dos queijos artesanais. 

Aqueles que defendem a proibição da maturação de queijos com casca em tábuas de madeira (caso do queijo Coalho), alertam sobre o risco potencial de contaminação com microrganismos patogênicos, com preocupação mais focada na Listeria monocytogenes, devido justamente à formação de comunidades bacterianas que se convertem em biofilmes na interface casca-madeira. A situação tornou-se tão polemica que em 2017 a FDA (Food and Drug Administration, correspondente a ANVISA no Brasil) americana emitiu um comunicado decidindo aplicar uma antiga norma (nunca antes aplicada por seus efeitos) que proíbe a importação pelos Estados Unidos de queijos europeus que tenham sido maturados em prateleiras de madeira.

Esta decisão foi considerada tão draconiana, que desde então o assunto vem sendo calorosamente debatido nos órgãos regulatórios americanos, com a defesa firme da prestigiada WCMA ( Wisconsin Cheesemakers Association) em prol do grande número de fábricas de queijos do país que elaboram excelentes queijos, curados em tábuas de madeira. Posição semelhante foi adotada pela ACS (American Cheese Society) que declarou que o uso da madeira é seguro, desde que os procedimentos adequados de limpeza e sanitização sejam aplicados. Reconhece ainda que o uso de madeira é especialmente fundamental para os fabricantes americanos de queijos artesanais, sempre muito premiados no reconhecido concurso anual da ACS.

Um importante pronunciamento em defesa dos queijeiros americanos já tinha sido feito pelo CDRCenter for Dairy Research, da University of Wisconsin, considerado o mais respeitado centro de estudos avançados de tecnologia de queijos dos EUA. Em um artigo publicado em seu boletim Dairy Pipeline (volume 25, número 1, de 2013) os cientistas Bénédicte Coudé e Bill Wendorff apresentam os benefícios da cura de queijos em tábuas de madeira tanto para a casca quanto para a maturação em si mesma, e concluem que não existe nenhum perigo de contaminação com microrganismos patogênicos, aí incluída a Listeria monocytogenes, desde que os procedimentos recomendados de limpeza e desinfecção, sejam adotados.

Ao final de tanta polemica, a madeira continua sendo usada na maturação de queijos nos Estados Unidos, tendo sido acordado que o ônus da prova cabe à FDA: a agência terá que provar de forma cabal que a formação de colônias ou biofilmes na interface queijo-tábua é insegura do ponto de vista sanitário e, assim, não será papel de associações como CDR, WCMA e ACS provarem o contrário, ou seja, que a microflora que habita essas comunidades é segura.

Diversos estudos científicos recentes tem mostrado exatamente o contrário do que dizem os críticos do uso da madeira, e tem comprovado que ela é segura e não permite o crescimento de contaminantes indesejáveis e perigosos para a saúde do consumidor de queijo. Este fato já vinha sendo demonstrado empiricamente através da qualidade observada em todos os queijos tradicionais, como o Emmental e Parmigiano Reggiano, que tem sido maturados há séculos em tábuas de madeira.

Em um trabalho científico conduzido por Mariani et al. (2011) foram avaliadas 50 tábuas de madeira em 8 diferentes fábricas de queijo Reblochon, na região da Savóia francesa. A escolha do Reblochon não foi por acaso: este queijo de alta umidade foi selecionado devido à sua maturação superficial, da qual participam não somente bactérias, mas elevado número de mofos e leveduras (Geotrichum, Brevibacterium, e outras) que consomem o ácido lático e fazem subir o pH da casca, facilitando um crescimento eventual de Listeria monocytogenes. Ao longo da maturação do Reblochon os pesquisadores constataram não somente a ausência de microrganismos patogênicos, dentre eles Listeria monocytogenes, mas também descobriram que os biofilmes formados nas tábuas de cada uma das fabricações eram constituídos majoritariamente da microflora dos queijos que ali curavam.

Maturação do queijo Reblochon em prateleiras de madeira,  em Savoy na França.
Foto crédito: Sindicato Interprofessional de Reblochon

O mesmo estudo comprovou ainda o que já se suspeitava e era mencionado em trabalhos anteriores: o efeito inibitório do biofilme contra a implantação e crescimento da Listeria monocytogenes, provavelmente devido a competição com bactérias corineformes que também crescem na madeira. É interessante mencionar outra conclusão, a de que este efeito inibidor era diminuído com lavagens demasiado frequentes das tábuas, para a remoção dos biofilmes. Ou seja, é importante limpar, lavar, etc., mas que isso seja feito com frequência controlada.

Em estudo semelhante, Guillier et al. (2008) avaliaram a competição entre a microflora do biofilme em tábuas usadas em maturação e algumas cepas de Listeria monocytogenes, e chegaram a conclusões semelhantes as de Mariani et al (2011), afirmando que o potencial de crescimento de Listeria monocytogenes em colônias originadas da interface de queijos com a madeira onde são maturados, é muito limitado, desde que estes mesmos biofilmes sejam preservados. Os autores sugerem o mesmo mecanismo já mencionado, para a inibição de outros microrganismos patogênicos, como Staphylococcus aureus.

A União Europeia (UE), mostrando maturidade e respeito à suas longevas tradições queijeiras e também acatando resultados da comunidade cientifica, permite o uso de madeira para a maturação de queijos sem embalagens. A única exigência é de que as tábuas sejam tratadas periodicamente com detergente seguido de imersão em água a 70°C por 30 minutos.

Considerando estes resultados, é natural que se conclua que queijos de casca muito mais seca e lisa, como o Suíço, Parmesão, etc., largamente maturados em tábuas de madeira no Brasil oferecem ainda muito menos riscos de crescimento de patógenos, já que o pH na interface queijo-madeira é baixo (5,25-5,35), assim como é baixa a Aw (atividade de água, relativa a concentração de sal) que também exerce efeito inibitório sobre a proliferação microbiana.

Todos os trabalhos realizados indicam que o uso da madeira é seguro, mas devem ser observados protocolos de limpeza e desinfecção para garantir a ausência de microrganismos contaminantes. Neste sentido, alguns dos estudos se dedicaram a estabelecer os tratamentos que poderiam ser usados pelos queijeiros em todo o mundo.

Em síntese, o uso da madeira na maturação de queijos sem embalagens é de comprovada eficiência e necessidade e sua utilização deveria ser mantida e regulamentada pelas autoridades sanitárias do Brasil, quando se prescreveria a obrigatoriedade dos processos de limpeza e desinfeção das tábuas. Não se justifica tecnicamente nenhuma proibição e restrição ao seu uso, e também por se tratar de uma tradição secular incorporada à cultura queijeira do país e, como tal, deve ser respeitada.

Fonte: http://www.guialat.com.br/?p=detalhar_noticia&id=4420

2 comentários em “Uso de madeira na maturação de queijos: uma tradição secular a ser respeitada – Parte 2”

  1. Parabéns Prof. Pela matéria,
    Muitos que rezam ao contrário , são contra mais não tem estudo para provar que a maturação em tábuas e maléfica.

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    • Caro Dálvaro Paixão!

      É pura verdade o que você afirma, ou seja, os que são contra o uso de prateleiras ou tábuas de madeira na maturação de queijos, NÃO têm ou Não querem saber do conhecimento científico que fundamenta o USO DA MADEIRA na maturação de Queijos Artesanais.
      Ademais, o uso da madeira na produção de queijo tem mais de 5000 anos, ou seja, desde quando surgiu o queijo.

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