A importância e origem dos coalhos na produção de queijos

A coagulação é a etapa mais importante na produção de queijos, a qual objetiva concentrar a proteína do leite, retendo também a gordura. Para que etapa seja realizada é necessária a adição do coalho. O coalho ou renina não é mais que uma mistura de enzimas (ex. quimosina e pepsina) que quando adicionado ao leite produz a primeira etapa de formação do queijo, a coagulação.

As enzimas constituintes do coalho têm como função hidrolisar (quebrar) caseínas, especificamente a fração proteica kappa-caseína, que estabiliza a formação de micelas e previne a coagulação do leite. Portanto, a coagulação do leite corresponde à formação de um coágulo firme (insolúvel), a coalhada, obtido por meio de modificações físico-químicas das micelas de caseína, em tempo determinado. A obtenção deste gel pode ocorrer por acidificação, ou por ação enzimática com o recurso a um coalho. Estes dois mecanismos são bastante distintos e dão origem, por consequência, a queijos totalmente diferentes (CAVALCANTE, 2004).

A coagulação ácida é obtida por via biológica através da produção de ácido láctico pelas bactérias do fermento, ou pela adição de ácidos orgânicos diretamente ao leite. Tem uma duração média de 24 horas, com o auxílio de elevada acidez e, atualmente, é uma tecnologia aplicada a um número limitado de tipos de queijo, sendo o mais conhecido deles o Petit-suisse.

A coagulação enzimática é realizada por meio da utilização de enzimas proteolíticas comercializadas na forma de soluções enzimáticas, vulgarmente designadas por coalho. São várias e de distintas origens as enzimas proteolíticas capazes de promover a coagulação do leite. (CAVALCANTE, 2004).

Na prática, para a coagulação enzimática é necessário determinar a quantidade de coalho a ser utilizado, levando em consideração a força do mesmo, ou seja, o seu poder coagulante e o tipo de queijo que se deseja, condicionado ao tempo de coagulação, a temperatura, a acidez e as concentrações de caseína e de cálcio solúvel.

TIPOS DE COALHO DISPONÍVEIS PARA O PROCESSO DE COAGULACAO ENZIMÁTICA

Coalhos de origem animal

No grupo de coagulantes de origem animal, o coalho de bezerro ou vitelo é considerado o mais adequado para a fabricação de queijos pelo seu elevado conteúdo de quimosina (ANTUNES et al, 2004).

Anatomia dos estômagos da vaca
Foto crédito: EducaPoint

A fonte tradicional da quimosina é o abomaso (quarto estômago dos ruminantes) de bezerros lactentes (que ainda dependem do leite materno para a sua sobrevivência) ou de outros ruminantes jovens. Os bezerros recém-nascidos e outros ruminantes produzem no estômago a quimosina para coagular o leite ingerido produzindo uma massa semilíquida, que permite aumentar o tempo de permanência do leite no organismo.

Loops de queijo em prateleiras de madeira em um armazenamento.
Foto crédito: freekip

A produção de coalho em pequena escala é realizada da seguinte forma, entre outras possíveis: imediatamente após os sacrifício do bezerro, que foi alimentado somente com leite, extrai-se o abomaso, este é lavado e cortado em tiras de onde se extrai o coalho com o auxílio de uma solução de cloreto de sódio ( a 12-20% NaCl). Após a extração, filtra-se e purifica-se a solução por precipitação salina. Esta solução é conservada pela adição de sal e ácido bórico, entretanto se for destinada ao consumo humano usa-se a glicerina como conservante (BASSO, A., et al, s/d).

No abomaso e extratos de outros tecidos do estômago animal, as proporções de quimosina e pepsina variam de acordo com a idade do animal e tipo de alimentação. Extratos provenientes de estômagos de bezerros jovens possuem alto conteúdo de quimosina, sendo a sua composição, normalmente 80-90% de quimosina e 10-20% pepsina. Por sua vez, os coalhos de bovinos adultos apresentam maior conteúdo de pepsina, em torno de 90% (ANTUNES, et al, 2004).

Os métodos de preparação, padronização e conservação do coalho são variáveis em relação ao fabricante. No entanto, o coalho deve ser diluído de 6 a 10 vezes em água (não clorada) para que ocorra uma distribuição homogênea no leite. Caso a diluição não seja realizada com rapidez, o coalho pode perder a sua atividade. A luz solar também inativa o coalho, por este motivo deve ser usado embalagem que impeça a penetração de luminosidade, como plástico ou vidros escuros (BASSO, A., et al, s/d).

Coalhos pepsínicos

A pepsina é uma enzima proteolítica presente em coalhos de bovinos, sendo encontrada nos sucos gástricos dos bovinos adultos, como substituinte da quimosina, encontrada somente em bezerros. A pepsina apresenta-se menos ativa como coagulante a pH superior a 6,68 e a temperaturas maiores que 44°C.

O tempo de coagulação até o corte da coalhada é maior quando se utiliza coalhos pepsínicos (BASSO, et al, s/d). No entanto a pepsina bovina é uma enzima mais proteolítica e menos específica que a quimosina, e em condições favoráveis pode hidrolisar excessivamente as caseínas, podendo causar diminuição no rendimento, sabor amargo e aumento de proteólise geral nos queijos (Dornellas, 1997).

Coalhos vegetais

O primeiro coagulante de origem vegetal foi o látex da figueira (Ficus carica) pois há relatos da existência desta árvore desde a antiguidade.

Muitos extratos vegetais são capazes de coagular o leite, entretanto existem alguns que são excessivamente proteolíticos como a papaína da Carica papaya (mamão) e a bromelina do Ananas sativa (abacaxi) (BASSO, et al, s/d).

Cynara cardunculus, conhecida por cardo-coalheiro ou cardo-leiteiro, é, como a alcachofra, um cardo na família Asteraceae. É uma planta nativa de Portugal, conhecida pelo seu efeito coagulante natural, usado na produção de queijos.

Flor de cardo
Cynara cardunculos (cardo selvagem)
Foto crédito: Wikipédia
Queijo Serra da Estrela
Foto crédito: Pracinha Portugal
Queijo Serpa DOP – Gigante – Queijaria Guilherme
Queijo Serpa
Foto: Queijaria Guilherme

Um dos coalhos vegetais mais usados é o extrato de Cynara cardunculos (cardo selvagem) constituído pela enzima cinarase, sendo o mais utilizado para a fabricação de queijos artesanais de Portugal, como os conhecidos queijos Serra da Estrela e o Serpa (ANTUNES, et al, 2004).

Coalhos microbianos

Nos últimos anos tem sido difundido o uso de coagulantes de origem bacteriana e fúngica. Foram várias as razões que levaram à necessidade de pesquisar novos tipos de coalhos, desde o aumento da produção mundial de leite e queijos e consequentemente a escassez da disponibilidade de coalho bovino, bem como as constantes críticas aos preparados comerciais de enzimas coagulantes (coalhos industriais) por conterem não apenas a enzima específica, cuja atividade é impressa no rótulo, mas também outras enzimas produzidas pelo mesmo material de origem/organismo, e que causariam efeitos colaterais nos alimentos (Enzima: natureza e ação nos alimentos, 2011).

Tem-se investigado a capacidade proteolítica e coagulante de centenas de culturas de bactérias e fungos, nos últimos anos.

O coagulante derivado do Rhizomucor mihei (fungo) tem sido o mais utilizado na fabricação de queijos (ANTUNES, et al, 2004). A protease presente no coalho deste fungo degrada rapidamente a caseína na faixa de pH 5,5-7,0 sendo este extrato muito usado na fabricação de vários tipos de queijo.

A adição de cloreto de sódio (NaCl) no leite prolonga o tempo de coagulação quando se está usando esta enzima, enquanto que a adição de cloreto de cálcio (CaCl2) o reduz consideravelmente. Este extrato é sensível a temperaturas na faixa de 37 a 45°C sendo destruído a temperatura superior a 70°C.

NOTA: Este tipo de coalho é o mais utilizado na produção de queijos no Brasil, inclusive na producao do queijo Coalho artesanal.

Coalho industrial 100% Quimosina

Como a quantidade de quimosina que se consegue obter dos bezerros é sempre inferior às exigências de mercado, e a maioria das proteases presentes em coalhos de origem fúngica não se mostram muito adequadas para a fabricação de alguns tipos de queijo (devido à alta atividade proteolítica e pouca especificidade), atualmente a maior parte da quimosina utilizada é produzida laboratorialmente com leveduras, fungos ou bactérias geneticamente modificadas (num processo semelhante à produção de insulina) (BASSO, et al, s/d).

Atualmente, por meio de técnicas de manipulação genética de microrganismos é possível a produção de um coagulante 100% de quimosina. Este coalho (coagulante) nasceu da introdução de genes de estômagos de ruminantes em alguns microrganismos (Kluyveromyces lactis, Aspergillus niger var awamori , Escherichia coli) direcionando-os para a produção de quimosina. Dessa forma, a quimosina produzida é 100% pura, eliminando os problemas de proteólise acentuada.

Por ser produzido por microrganismos transgenicos, a aprovação deste coalho levou vários anos. Antes de ser colocado no mercado, foram feitos testes intensivos de segurança alimentar e ambiental, sendo aprovado, por várias organizações de segurança alimentar, no final da década de 90.

fromage en affinage

CURIOSIDADES:

Antigamente, empregava-se o estomago do mocóKerodon rupestris – (um roedor grande, mamífero e nativo da caatinga do Nordeste e norte de Minas Gerais) como solução de coalho na produção do nosso queijo Coalho artesanal. Tive oportunidade de degustar um excelente queijo Coalho artesanal elaborado com coalho de Mocó no Rio Grande do Norte em 2017.

Em Portugal, a produção dos queijo s com Denominação de Origem Protegida (DOP) tem de obedecer ao modo de producao tradicional explícito no Caderno de Especificações, pelo que é fácil identificar queijos feitos com coalho de origem animal, como o Queijo Rabaçal, Queijo de Cabra Transmontano, Queijo Terrincho, Queijo Picante, Queijo Amarelo da Beira Baixa, Queijos de São Jorge e do Pico. Por outro lado, os Queijos da Serra da Estrela, Queijo de Castelo Branco, Queijo de Nisa, Queijo de Évora, Queijo Mestiço de Tolosa, Queijo de Azeitão e o Queijo de Serpa são coagulados com o cardo Cynara Cardunculus, coalho de origem vegetal.

O tipo de coalho usado em qualquer queijo tradicional dentro da União Europeia e que tenha rotulagem de DOP pode ser facilmente verificado através da Internet. Os queijos industriais geralmente não têm indicações dessa natureza no rótulo e é necessário obter informação junto à empresa sobre o tipo de coalho utilizado.

Fonte: AGROTEC, Número 8, Portugal, Setembro 2013. Biotecnologia. Autora: Joana Fernandes.

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