A Nova Era Pós-Pasteuriana – Por Dan Strongin

O novo conceito de política pública em segurança dos alimentos e leite cru

 por Dan Strongin, dono de EnjoyCheese.net, ex-presidente do American Cheese Society e ASQ CMQ/OE

 O objetivo deste trabalho é apresentar as mudanças que foram e vêm sendo implementadas no mundo por meio de políticas públicas na área de segurança dos alimentos. E também identificar as melhorias decorrentes dessas mudanças, uma vez que influenciam na condição econômica dos pequenos produtores de queijos artesanais e na qualidade do leite cru.

Essas mudanças abrem caminho para criação de novas ferramentas de prevenção às contaminações em geral, de melhoria dos processos contínuos de fabricação de queijos, análise e quantificação dos riscos de fabricação e, finalmente, de melhor harmonização com a natureza.

A pasteurização, por exemplo, é bastante útil. Mas, normalmente, ocorre no final do processo e tem como objetivo eliminar bactérias patogênicas. Esses patógenos  são provenientes principalmente de contaminações dos alimentos, da água e das condições sanitárias precárias. E isso acontece também nas etapas seguintes de fabricação, ocasionando um perigo real para o consumidor, como mostraremos com exemplos.

A pasteurização é uma ferramenta. Ela salvou milhares de vidas quando foi introduzida no final do século XIX. A época de Pasteur foi dura. Sem refrigeração, haviam laticínios instalados nos porões das cidades. Vacas fechadas em condições brutais, em locais escuros, frios, úmidos, cheios de excremento (1).

Esta situação foi terreno fértil para doenças como febre tifoide, tuberculose, brucelose e outras. Naquela época, a pasteurização foi um milagre para a saúde da humanidade, diminuindo um flagelo que estava devastando as cidades, durante os primeiros anos da Revolução Industrial. Na contemporaneidade, necessitamos substituir situações rígidas por ações preventivas, com eficácia comprovada por meio de experimentações científicas e observações empíricas.

Como a ciência está sempre em movimento, o sistema de segurança dos alimentos deve ser sempre atualizado. Com este intuito, pesquisas são realizadas em laboratório para verificar sempre o potencial com o qual uma bactéria patogênica se reproduz causando danos no sistema estudado. Com os novos conhecimentos oriundos da microbiologia dos alimentos, sabemos que esses danos não são iguais em diferentes meios. Muitos dos dados existentes na literatura devem, portanto, ser corrigidos.

Atualmente, sabemos por meios científicos, que o melhor método para a venda de legumes saudáveis e com sabor apurado é colhê-los envoltos em terra. Uma vez retirada a terra, eliminamos a comunidade de micróbios protetores. Portanto, devemos limpá-los somente no momento do uso.

Devemos registrar também que o atual sistema de segurança dos alimentos foi padronizado por meio de estudos em alimentos industrializados. Portanto, os padrões não são bons para os artesãos ou pequenos produtores. Necessitamos corrigi-los.

Mudanças fundamentais na política de segurança dos alimentos 

A Organização das Nações Unidas da Agricultura e Alimentação (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) estão promovendo mudanças fundamentais na política de segurança dos alimentos. O relatório Agriculture at a Crossroads da FAO (2009) cita que o custo de nos basearmos em requisitos padronizados para a produção em massa é muito alto para fazendas familiares e não é desejável para as mesmas.

As novas orientações da FAO para modernizar as políticas públicas de segurança dos alimentos são (2):

  • Criar um Sistema Integrado de Segurança dos Alimentos “Farm to Fork” (da Fazenda à Mesa),
  • Quaisquer procedimentos, metas e regulamentos de segurança dos alimentos devem ter base científica,
  • Para calcular e caracterizar o nível relativo do risco, deve-se equilibrar o potencial de risco encontrado no laboratório com evidências empíricas,
  • Gerenciar riscos usando a disciplina Gestão de Riscos que leva em consideração vários fatores, inclusive, os custos na extração do leite cru e na fabricação de queijos artesanais dos pequenos produtores,
  • Trocar antagonismo por colaboração e policiamento por prevenção,
  • Aperfeiçoar continuamente os processos.

A segurança dos alimentos é responsabilidade compartilhada que requer interação saudável entre todos os interessados.

Prevenção 

A nova lei americana, o Food Modernisation Act (FMA) foi implementada pelo Congresso, com o objetivo de integrar acordos internacionais. Assim, o Food and Drug Administration (FDA) está realizando uma revisão dos procedimentos atuais para avaliar suas bases científicas.

A contagem de bactérias não patogênicas (coliformes totais) como indicador do nível de saneamento nas fazendas foi colocada em dúvida. Em estudo realizado pela Universidade de Cornell e publicado no Journal of Dairy Scienc(setembro, 2016), não foi encontrada a correlação entre a contagem de bactérias não patogênicas e o nível de saneamento nas fazendas. Em seguida, o FDA suspendeu o uso de contagem de coliformes totais para pequenos produtores artesanais, melhorando o gasto dos mesmos.

Um grupo de senadores dos Estados Unidos enviou também uma carta para o FDA com a seguinte recomendação: “Essa pausa será uma oportunidade para desenvolver a implementação das novas regras científicas. Continuamos preocupados com práticas, realizadas, anteriormente, que não implicam em melhorias para a saúde pública”.

A regra dos 60 dias de envelhecimento dos queijos feitos de leite cru para eliminar riscos bacterianos antes da comercialização também foi colocada sob suspeita. Quando assessores científicos do FDA verificaram a base científica da regra com a finalidade de comercializar queijos feitos de leite cru, concluíram que a escolha do número 60 foi pontual e não científica (3). Ela surgiu de uma necessidade de resposta devido a um surto tifoide em leite em 1933 (4). Discussões estão acontecendo nos EUA com a ideia de substituir a regra de 60 dias por prevenção e melhoria dos processos.

Uma pesquisa divulgada em setembro de 2016, pelo FDA, que analisou amostras de queijos artesanais maturados feitos de leite cru de todos tipos adquiridos em mercados populares, não detectou ameaças à saúde.

Outro estudo realizado na Universidade de Vermont (USA, 2013) sobre a qualidade do leite cru destinado à fabricação de queijos artesanais mostrou que não há nenhum risco microbiológico.

Poderíamos perguntar: é possível que uma comunidade de micróbios protetora dentro do leite cru iniba o crescimento de bactérias patogênicas? Acreditamos que isso seja possível e mereça avaliação científica.

Quantificação do Risco do Leite Cru

 Uma análise de risco, usando o novo padrão da FAO, chamada Quantitative Microbiological Risk Assessment (QMRA), foi realizada por Nadine Ija (2013), pesquisadora canadense, caracterizou o leite cru como um alimento de baixo risco, cerca de 28 vezes menor do que o risco do espinafre cru.

Atualmente, o Center for Disease Control (CDC) Americano estima que por volta de 9.400.000 pessoas bebam leite cru regularmente nos Estados Unidos. Em média estatística, apenas uma dessas pessoas, a cada 4 anos, deve morrer por intoxicação alimentar causada por leite cru. Por uma questão de curiosidade, citaremos aqui uma outra comparação estatística também realizada pelo National Safety Council (NSC): o risco de morte ao cair da cama ou outros móveis nos EUA é milhares de vezes maior do que o de morrer bebendo leite cru.

Portanto, as providências com controles sanitários devem ser proporcionais às ameaças. Caso contrário, oneram muito o processo.

No que tange à pasteurização, esta tem como objetivo controlar riscos naturais, passando uma forte segurança ao consumidor, apesar de não ser uma fórmula mágica.

Porque usar a pasteurização no final do processo quando, na verdade, o problema começa bem mais cedo?

Na prática, a pasteurização elimina os efeitos das contaminações, mas desmotiva a busca pelas causas do problema. Se deixarmos as bactérias patogênicas se multiplicarem dentro do sistema de produção de leite, abriremos caminho para novas mutações que podem sobreviver à pasteurização. Isso aconteceu com a bactéria E.coli 0157 (5) e a Vaca Louca, ambas bioprodutos de processos de produção. O melhor método para encontrar e eliminar as causas produtoras de efeitos não desejados é a “Melhoria Contínua” (CQI,), método criado por Dr. Walter Shewhart há décadas.

Um Exemplo da Aplicação do Método “Melhoria Contínua”

Um cliente cujos queijos começaram a “explodir” buscou ajuda das autoridades, que se recusaram a ajudá-lo. Na visão deles, ironicamente, o produto estava de acordo com as metas de contagem de bactérias coliformes não patogênicas. Como consultor dessa fábrica de queijos, apliquei a metodologia de Melhoria da Qualidade Continua para entender o que estava acontecendo.

Eu sabia que algumas grandes empresas de queijos feitos com leite pasteurizado estavam tendo o mesmo problema. A hipótese dos pesquisadores foi a de que o agente causador das explosões era uma mutação de coliforme fecal, que desenvolveu a habilidade de sobreviver à pasteurização. Então, foi um problema generalizado e não particular do meu cliente, que usava o leite cru. Assim, a minha pergunta foi: em que passo, ou passos, do processo essa mutação estava contaminando o leite? O processo natural é representado por uma senoide, como vemos na Figura 1.

Figura 1

O primeiro passo para a aplicação do método “Melhoria Contínuaé verificar se o problema é normal ou não. Se não, é preciso investigar a causa.

Usando os dados da contagem de bactérias não patogênicas (Figura 2), verifiquei anormalidades relativamente ao padrão (ver Figura 1) do FDA.

Figura 2 – Contagem anormal de coliformes totais

O passo seguinte é identificar o problema. Pensamos que algum resíduo de fezes poderia estar misturado no leite. Para verificar, listamos todas as entradas possíveis de fezes na ordenha e passamos alguns dias observando.

Registramos no gráfico o dia correspondente ao pico da contagem das bactérias. Identificamos, assim, quem estava trabalhando nesse dia. Ao observar esses funcionários durante a ordenha, vimos que um deles usou a mangueira de água com forte pressão enquanto preparava a vaca para a máquina de ordenha. Isso poderia facilitar o caimento de pedacinhos de fezes nas tetas da vaca. Então, mudamos a força da água na mangueira. Depois disso, percebemos que a qualidade do leite melhorou.

Mas, aconteceram novos picos na contagem de coliformes totais. Portanto, parecia que o problema estava acontecendo após a ordenha. Mas, mesmo assim, prosseguimos na nossa análise e retiramos as tampas dos tanques e as válvulas dos tubos para inspecionar por dentro. Encontramos bolsas de uma substância que parecia iogurte, especialmente na válvula do tanque de armazenamento. Quando perguntado, o funcionário responsável disse que a última vez que ele tinha limpado a válvula havia sido há 5 anos. Ninguém prestou atenção, porque o leite era pasteurizado e os exames eram bons.

Fig. 3- Tanque de estocagem de leite cru

De fato, quando perguntaram ao fiscal do estado porque ele não fiscalizou a máquina durante 5 anos, ele respondeu que “tudo estava em conformidade e que o leite estava sendo pasteurizado”.

A entrada prévia de fezes no leite contaminou o interior do equipamento entre a ordenha e os tanques de armazenamento, permitindo a formação dos biofilmes. De vez em quando, esses biofilmes se soltavam e entravam no fluxo do leite, criando picos na contagem de bactérias.

Para confirmar, fechamos a ordenha por um dia para higienizar o equipamento. O problema desapareceu. Porém, ainda nos perguntávamos como a bactéria mutante estava entrando no colón da vaca. Fizemos uma nova checagem e descobrimos que as plantas coletadas para a produção de silagem (uma fonte de alimento para vacas por meio de fermentação) estavam sendo cortadas muito perto do solo, o que poderia facilitar a entrada de fezes na silagem. De acordo com o professor pesquisador que consultamos, existia a possibilidade de este ser o meio em que a bactéria se modificava.

Conclusão 

Precisamos parar de acreditar na aplicação de pílulas mágicas. O objetivo precisa ser a melhoria contínua da qualidade de produção do leite. Para isso, deve-se trocar o policiamento por esforços colaborativos, introduzindo boas práticas como o ponto de partida para programas de Melhoria Contínua dos Processos. Devemos também adaptá-los aos pequenos produtores.

É importante coletar e analisar dados empíricos sobre o que está acontecendo com os processos nas fazendas, efetuar o mesmo com dados epidemiológicos que identificam o tamanho real do problema e, finalmente, otimizar os processos para melhor uso dos recursos limitados.

Outro ponto é pesquisar a microbiologia do leite cru e derivados nas fazendas e as ordenhas nas propriedades de produtores artesanais. A partir daí, harmonizar o mundo natural para estabelecer sistemas “capazes” de obter leite saudável (seguir a Revolução Microbiológica Científica, que já está publicada), redefinindo a qualidade desse leite para incluir a riqueza da sua microbiota e do seu sabor.

Referências citadas:

1. Urban dairies .http://query.nytimes.com/mem/archive-free/pdf?res=9F06E4D61630E633A25752C 0A9639C94669FD7CF

The Pernicious Practice of Feeding Distillery Slop to Dairy Cows. T.E.C. Jr., Journal of the American Association of Pediatrics, December, 1981, Volume 68, Issue 6 http://pediatrics.aappublications.org/content/68/6/780

2. Risk Characterization of Microbiological Hazards in Food Guidelines, WHO, FAO, 2009

3. https://dash.harvard.edu/bitstream/handle/1/8852188/Knoll05.pdf pagina 26:

4. http://www.foodpoisonjournal.com/2016/07/#.WDdXgKIrJL8 Raw Milk Cheese – Worth the Risk? BILL MARLER JULY 29, 2016

5. The effects of antibiotic usage in food animals on the development of antimicrobial resistance of importance for humans in Campylobacter and Escherichia coli, Frank M. Aarestrup*, Henrik C. Wegener, Danish Veterinary Laboratory, Bülowsvej 27, DK-1790 Copenhagen V, Denmark.

 

Fonte: Sertãobras – www.sertaobras.org

 

2 comentários em “A Nova Era Pós-Pasteuriana – Por Dan Strongin”

    • Boa tarde, Heloisa Collins!
      Muito obrigado pelo seu comentário ao artigo “A Nova Era Pós-Pasteuriana, escrita pelo amigo Dan Strongin.
      Realmente, os cursos de formação de Medicina Veterinária e de Fiscais de Inspeção Sanitária no Brasil, parecem que desconhecem este conceito moderno. É uma pena!
      Me desculpe, não responder de imediato, mas estava me recuperando de uma cirurgia cardíaca.
      Abraços e boa sorte!
      Prof. Fernando Mourão
      Fortaleza-CE

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