Um novo guia realista para a produção de queijo artesanal na Europa

Foi apresentado oficialmente em Bruxelas em novembro de 2017, o novo “Código Europeu de Boas Práticas de Higiene na produção de queijo artesanal e de produtos lácteos”. Veja-o no link abaixo.

Qual o principal exemplo desse “Guia de Boas Práticas” para os brasileiros? Em primeiro lugar, todos os atores envolvidos na cadeia do queijo europeu foram convidados a participar, como representantes de associações de produtores de leite, de queijo (agricultores familiares e industriais), comerciantes, fiscais e pesquisadores. Na terceira página do código está explícito: 400 “parte interessadas” foram consultadas para redação do texto!

O segundo exemplo que devemos seguir no Brasil: o guia é fortemente recomendado, mas não é obrigatório. O produtor que decidir seguir os métodos de controle sanitário da sua cabeça têm todo direito, mas precisam declarar e formalizar seus procedimentos provando por exames de auto controle que seus produtos são próprios para consumo humano.

Enquanto isso no Brasil

Infelizmente, no Brasil a coisa acontece de forma diferente. Os fiscais agropecuários e agentes do MAPA e dos institutos estaduais de agropecuária resolvem sozinhos como os produtores devem fazer. Em outras palavras, uma turma que nunca fabricou queijo na vida e que ignora as “verdadeiras boas práticas tradicionais” utilizadas por gerações e gerações de produtores decide como quem já sabe fazer queijo deve proceder. Isso é o que está acontecendo atualmente em Minas Gerais. Depois de oito meses de negociações secretas, em que os produtores foram excluídos, os fiscais apresentaram o caderno de regras final e pediram contribuições dos produtores. O texto já virou projeto de lei estadual e ainda nem foi marcada sequer uma audiência pública. E os produtores que enviaram contribuições não tiveram retorno. Portanto, um absurdo!

Túlio Madureira, produtor de queijo do Serro com mofo branco também não foi convidado para redigir o texto da lei que concerne sua atividade profissional em Minas Gerais. FOTO: Débora Pereira/SerTãoBras.

Outro exemplo: no livro “Guia de Cura de Queijos”, escrito por Débora Duarte e dois especialistas franceses, transmitem técnicas de cura que aconselham o uso de paredes permeáveis para manter um ambiente microbiológico saudável nas salas de cura. Assim, os autores aconselham a construção de salas enterradas para economizar na climatização, pois são naturalmente mais frias e úmidas.  Entretanto, uma produtora tentou conversar com um fiscal do SISP, em São Paulo, para falar do seu projeto de construir um local assim. Resposta: proibido. “Não existe possibilidade pela lei brasileira de curar queijo em sala de cura com parede permeável” foi o que disse o fiscal. Porque a lei não entende que queijos vivos devem ser curados em ambientes onde possam respirar e suas floras naturais serão protetoras desses ambientes.

Salas de cura com parede de tijolo e brumas para que o queijo possa guardar umidade, como na queijaria Paccard na França? Nem pensar no Brasil! FOTO: Débora Pereira/Profession Fromager

A possibilidade de indagar se o produto final curado nessas cavernas é próprio para o consumo humano nem é ventilada. O produtor não tem a chance de provar, por exames microbiológicos, que suas técnicas são inteligentes e que seu queijo é bom. De antemão as autoridades sanitárias decidem que o produto não presta. Com isso nosso queijo continua sendo empurrado para a clandestinidade. Até quando?

Na Europa cada país tem flexibilidade para respeitar usos de materiais tradicionais

O Guia europeu, traduzido em 24 línguas (destinado aos Estados-Membros da União Europeia), foi lançado oficialmente em dezembro de 2017.

Para a implantação do novo Guia, um programa de treinamento está sendo planejado, primeiro para os técnicos em laticínios e fiscais agropecuários, até setembro de 2018. Em seguida para os produtores rurais, que começam em outubro de 2018 e se estenderão até 2025.

Confira abaixo a entrevista de Cécile Laithier, gerente de projetos no Institut de l’Elevage, concedida a Arnaud Sperat Czar, jornalista e colaborador da SerTãoBras. Cécile Laithier é uma das pesquisadoras que redigiu a nova versão do Guia Europeu das Boas Práticas de Higiene.

As pesquisadora Marie-Christine Montel, Valérie Michel, Cécile Laithier et Antoine Berodier no seminário de apresentação do guia para o grande público, na Bélgica. FOTO: Débora Pereira/SerTãoBras

A quem  se destina novo código?

“Aos produtores que transformam (trabalham ) com leite produzido na própria fazenda (“fermiers”) e aos produtores-artesãos, que compram leite de terceiros. Ele foi escrito em parceria com a rede europeia Face Network, que reúne essas duas categorias. A Europa não distingue produtores de queijo que transformam seu próprio leite, dos produtores que compram matéria-prima de terceiros, essa é uma definição particularmente “francesa”. Por isso solicitamos a inclusão de elementos sobre a coleta de leite para os queijeiros artesãos (que não criam animais)”.

E o que mudou?

“É mais fácil e mais acessível. O número de fichas de produtos, por exemplo, foi reduzido de 14 para 8. Também é mais completo respondendo a todos os pontos do Plano de Gestão Sanitária. Ele leva em consideração os últimos desenvolvimentos normativos, como a ISO 22000”.

Quais são os princípios básicos?

“O princípio fundamental, reafirmado, é que os profissionais estão vinculados a uma obrigação de resultado e não de meios. Eles têm duas ferramentas essenciais: a observação de boas práticas de higiene e fabricação e a aplicação de princípios HACCP. Esta nova edição não é nenhuma revolução. Somente permite formalizar o que fazemos todos os dias com meios simples (prevenção, monitoramento, correção) e aconselha ferramentas realistas para que os produtores possam avançar”.

Sua aplicação é obrigatória?

“Não, apenas recomendado. Seguir ou não, permanece uma escolha: um produtor que não deseja obedecer o guia deve planejar e formalizar seu próprio método de análise de risco. A ideia é ter uma ferramenta coletiva onde cada produtor tenha liberdade para personalizar sua forma de trabalhar. Com certeza é a ferramenta de referência para o setor e um fiscal deve ter conhecimento das suas prescrições. Geralmente, os produtores de queijo têm todo interesse em aplicá-lo, mas não é obrigatório”.

O guia permite certa flexibilidade?

“Não. Ele leva em consideração as especificidades da produção agrícola e de pequena produção leiteira, mas não há medidas de flexibilidade no sentido de regulamentação a nível europeu. Na verdade, a flexibilidade é um conceito reconhecido pela Europa para produtos tradicionais e pequenas empresas. Mas cabe a cada Estado-Membro definir as medidas de flexibilidade que ele autoriza. Foi assim que a França autorizou o uso de materiais tradicionais (como madeira, folhas secas, cobre etc) já em 2012. O Guia Europeu evoca esses possíveis exemplos ou outros, como as possibilidades de adaptação em relação às instalações e equipamentos. Por outro lado, somente as ações que não constarem no guia devem ser formalizadas pelos produtores”.

Cura sobre palha, comum na França, não pode ser realizada no Brasil a não ser forma clandestina. FOTO: Débora Pereira/Profession Fromager

Ainda continua na memória dos franceses as discussões muito difíceis, com outros países da Europa, para que a produção de leite cru pudesse continuar acontecendo nos anos 90. Essas discussões continuaram no processo de redação do presente guia?

“Houve muito debate sobre STECS (como são chamadas na França as shiga toxinas produzidas pela E. coli). Alguns países desejam impor pasteurização para evitá-las. Este caminho não foi seguido, chegamos a um compromisso de bom senso. O Guia enfatiza a prevenção contra a contaminação fecal. A França insistiu que a parte na produção de leite seja densa: é onde deve começar o controle sanitário. O Guia lembra que a prevenção exige o controle da contaminação, mas que não deve ser cega,  visto que é importante preservar outras floras, pois os balanços microbianos também podem contribuir muito para o controle sanitário. Ele exige uma limpeza sistemática, mas não desinfecção sistemática. Isso continua sendo uma escolha do profissional. O conhecimento tradicional é muito considerado no Guia. Um produtor novato tem todo o interesse em medir o pH do leite e queijo. Mas um mais velho e experiente, só de olhar ou provar o soro ou a coalhada, observando seu aspecto e sua cor, sabe se algo está errado. Essa observação está escrita no Guia”.

Resumindo, o novo Código Europeu de Boas Práticas de Higiene na produção de queijo artesanal e de produtos lácteos representa um grande avanço na valorização e defesa dos queijos artesanais europeus e que poderia servir de modelo para saída da clandestinidade dos queijos artesanais do Brasil.

FonteDébora Pereira, para o blog Só Queijo, do Paladar, publicado no jornal O Estado de São Paulo.

Link:

Código Europeu de Boas Práticas de Higiene na Produção de Queijo Artesanal e de Produtos Lácteos

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