USO DE MADEIRA NA MATURAÇÃO DE QUEIJOS: UMA TRADIÇÃO SECULAR A SER RESPEITADA

Publicamos hoje um artigo científico de autoria do nosso amigo queijeiro Dr. Múcio Mansur Furtado, sobre o uso da madeira na maturação de queijos. Múcio Furtado é uma autoridade quando o assunto é processamento de queijos. Ele tem Ph.D. em queijos na University of Wisconsin, USA. Publicou 13 livros sobre queijos e trabalha como Senior Principal Aplication Specialist na Du Pont Nutrition & Health, Brasil.

O uso de madeira em prateleiras de câmaras para maturação de queijos tem sido motivo de polêmica no Brasil, colocando em posições opostas queijeiros e agentes de inspeção. Prateleiras de madeira têm sido usadas há séculos para maturação de queijos, na Europa e mesmo nos Estados Unidos.

Maturação do queijo Parmigiano Reggiano em prateleiras de madeira
Foto crédito: ModenaToday

Muitos tipos de queijos foram tradicionalmente elaborados e moldados em fôrmas de madeiras por longos anos (caso do queijo Coalho) e este costume ainda persiste na fabricação de muitos deles, acreditando-se com justa razão que a madeira, sendo um material isolante, mantem o calor na massa permitindo melhor coesão entre os grãos e uma prensagem mais eficiente.

Enquanto seu uso em queijarias seja tradicional e com um longo registro de eficiência e segurança, o uso de madeira tem sido motivo de debates polêmicos nos últimos anos. Muitos a consideram melhor do que aço inox ou material plástico, além de ser mais  barata e de longa durabilidade quando devidamente tratada e cuidada.

Somente na Europa estima-se que cerca de 500.000 toneladas de queijos sejam curados anualmente em prateleiras com tábuas de madeira, das quais 350.000 toneladas apenas na França. Podem ser citados como exemplos queijos classificados como DOP – Denominação de Origem Protegida como o Comté, Reblochon, Beaufort, Munster, Cantal e Roquefort, que obrigatoriamente devem ser maturados em prateleiras de madeira. O mesmo ocorre com renomados queijos italianos Grana Padano e Parmigiano Reggiano, ambos curados por 1 e 2 anos, respectivamente, sempre em  tábuas de madeira.

No Brasil a madeira vem sendo usada na maturação de queijos há cerca de 130 anos, sem nenhum registro de problemas causados pelo contato do queijo com a mesma. Foi introduzida no Brasil pelos pioneiros holandeses no final do século XIX na região da Mantiqueira em Minas Gerais e posteriormente no inicio do século XX pelos dinamarqueses que se estabeleceram no sul de Minas. Antigamente era amplamente usada na cura do queijo Prato, que não era embalado logo após a fabricação, sendo portanto curado com formação de casca. Muitos outros queijos foram e continuam sendo curados em prateleiras de madeira no Brasil, como o Suíço (Gruyere e Emmental), Parmesão e o queijo do Reino. Este último requer tábuas especialmente preparadas, escavadas parcialmente para receber e acomodar um queijo esférico, como o queijo do Reino.

Queijo Coalho artesanal secando em prateleiras de madeira no Nordeste do Brasil
Foto crédito: Fernando Mourão

Observa-se nos últimos anos no Brasil um crescimento extraordinário e de forma mais organizada da fabricação de queijos artesanais. Já não são fabricados somente os tradicionais queijos da Serra da Canastra ou do Serro. Várias fábricas em sítios e fazendas elaboram sofisticados queijos de estilo europeu, e praticamente todos eles são curados, por semanas ou meses, em tábuas de madeira. Para este segmento, o uso da madeira é imprescindível e um fator decisivo para a qualidade dos queijos elaborados.

O uso da madeira é considerado crítico na secagem, desidratação e formação de casca em queijos curados sem embalagem. A madeira desempenha dois papéis importantes na maturação de queijos com casca:

  • estimula a ecologia microbiana da casca do queijo, pela formação de biofilmes. A superfície da madeira apresenta estrutura porosa, que permite o desenvolvimento de colônias microbianas, conhecidas por biofilmes. Sua natureza é determinada pela microflora, sob influência do tipo de queijo, além da frequência e condições de limpeza da madeira.
  • ocorre um intercâmbio hídrico entre a casca do queijo, a madeira e o ambiente em que se encontram, contribuindo para o ajuste da umidade nestes três meios. É muito difícil substituir na prática a madeira e seu fascinante papel no equilíbrio da umidade e formação da casca do queijo.

Algumas características da madeira justificam seu uso como prateleiras na maturação de queijos sem embalagem:

  • possui propriedades higroscópicas (porosidade da madeira) que auxiliam na secagem da casca do queijo.
  • evita, por absorção, que a umidade desprendida pelo queijo fique entre este e a prateleira, gerando putrefação e mau cheiro. Isso poderia ocorrer mais facilmente quando prateleiras de aço inox ou plástico são usadas, já que não ocorre nenhum tipo de re-absorção.
  • alguns tipos de madeira têm propriedades antimicrobianas, possivelmente ligadas à presença de polifenóis (flavonoides, taninos e óleos essenciais).

Na Europa é muito usado o abeto (um gênero de coníferas também conhecido como pinho alemão, ou cipreste). As espécies de madeira com maior capacidade antimicrobiana seriam o pinho (deve ser usado, mas sem óleo e os nós), o cedro e o carvalho (apesar de seu peso).

Para alguns tipos de queijos os fabricantes europeus preferem madeiras mais rústicas, que apresentem mais rugosidades e estrias, o que permitiria melhor circulação de ar entre elas e o queijo.

Em alguns lugares, a madeira é usada  não apenas para curar queijos, mas também nas tinas para sua elaboração, como ocorre com o Ragusano, elaborado na Sicília (Itália) e o Cantal (França). Observação microscópica de biofilmes de diversas fábricas usando tinas de madeira, mostra várias camadas de microrganismos incrustrados em uma espessa matriz de EPS (exopolisacararídios) com predominância de bactérias láticas termofílicas (em especial Streptococcus thermophilus) e também corineformes como o Brevibacterium linens. Não há grande presença de mofos e leveduras.

Aqueles que defendem a proibição da maturação de queijos com casca (caso do queijo Coalho artesanal) em tábuas de madeira, alertam sobre o risco potencial de contaminação com microrganismos patogênicos, com preocupação mais focada na Listeria monocytogenes, devido justamente à formação de comunidades bacterianas que se convertem em biofilmes na interface casca-madeira. A situação tornou-se tão polemica que em 2017 a FDA (Food and Drug Administration) americana (correspondente a ANVISA no Brasil) emitiu um comunicado decidindo aplicar uma antiga norma (nunca antes aplicada por seus efeitos) que proíbe a importação pelos Estados Unidos de queijos europeus que tenham sido maturados em prateleiras de madeira. Esta decisão foi considerada tão draconiana, que desde então o assunto vem sendo calorosamente debatido nos órgãos regulatórios americanos, com a defesa firme da prestigiada WCMAWisconsin Cheesemakers Association em prol do grande número de fábricas de queijos do país que elaboram excelentes queijos, curados em tábuas de madeira. Posição semelhante foi adotada pela ACSAmerican Cheese Society que declarou que o uso da madeira é seguro, desde que os procedimentos adequados de limpeza e sanitização sejam aplicados. Reconhece ainda que o uso de madeira é especialmente fundamental para os fabricantes americanos de queijos artesanais, sempre muito premiados no reconhecido concurso anual da ACS.

Um importante pronunciamento em defesa dos queijeiros americanos já tinha sido feito pelo CDRCenter for Dairy Research, da University of Wisconsin, considerado o mais respeitado centro de estudos avançados de tecnologia de queijos dos EUA. Em um artigo publicado em seu boletim Dairy Pipeline (volume 25, número 1, de 2013) os cientistas Bénédicte Coudé e Bill Wendorff apresentam os benefícios da cura de queijos em tábuas de madeira tanto para a casca quanto para a maturação em si mesma, e concluem que não existe nenhum perigo de contaminação com microrganismos patogênicos, aí incluída a Listeria monocytogenes, desde que os procedimentos recomendados de limpeza e desinfecção, sejam adotados.

Lavagem da madeira com jato de água sob pressão.
Foto crédito: GuiaLat

Ao final de tanta polemica, a madeira continua sendo usada na maturação de queijos nos Estados Unidos, tendo sido acordado que o ônus da prova cabe à FDA, ou seja, a agência terá que provar de forma cabal que a formação de colônias ou biofilmes na interface queijo-tábua é insegura do ponto de vista sanitário e, assim, não será papel de associações como CDR, WCMA e ACS provarem o contrário, ou seja, que a microflora que habita essas comunidades é segura.

Diversos estudos científicos recentes tem mostrado exatamente o contrário do que dizem os críticos do uso da madeira, e tem comprovado que ela é segura e não permite o crescimento de contaminantes indesejáveis e perigosos para a saúde do consumidor de queijo. Este fato já vinha sendo demonstrado empiricamente através da qualidade observada em todos os queijos tradicionais, como o Emmental e Parmigiano Reggiano, que tem sido maturados há séculos em tábuas de madeira.

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